Por Adiel Teófilo.
Quando
se fala em prestar contas do movimento financeiro aos membros da igreja, as
opiniões se dividem. Os argumentos são os mais diversos nos dois sentidos. Os
que são a favor dizem que é direito dos membros e que todos podem tomar
conhecimento sobre os valores e a destinação das contribuições. Aqueles que são
contrários afirmam que não convém envolver os membros em assuntos dessa
natureza e que não é prudente expor em público as movimentações financeiras e
patrimoniais da igreja.
Essas
são algumas das justificativas apresentadas. Mas, as organizações religiosas
são obrigadas ou não a prestar contas aos seus membros? Existe alguma disposição
legal estabelecendo obrigação nesse sentido? A resposta para essas questões
deve ser formulada mediante algumas reflexões jurídicas com base na legislação pertinente.
As organizações religiosas possuem ampla
liberdade para definir como funcionará a sua administração interna. O artigo 44, § 1º, da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 –
Código Civil, assim preconiza: “São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o
funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público
negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao
seu funcionamento”. Esse
parágrafo foi incluído pela Lei nº 10.825, de 22 de dezembro de 2003.
Diante dessa ampla liberdade de organização e
funcionamento, não consta do Código Civil ou de outra lei nenhum artigo
determinando expressamente que se preste contas aos membros. Todavia, isso não
significa dizer que as organizações religiosas podem funcionar legalmente sem o
mínimo de regras pré-estabelecidas quanto à sua estruturação interna e sem
qualquer norma sobre prestação de contas. As igrejas devem possuir um estatuto
registrado em Cartório, no qual façam constar a composição da sua estrutura
organizacional e o modo como os seus órgãos administrativos deverão funcionar.
Essa é a conclusão lógica que se extrai do parágrafo acima transcrito.
Além disso, o disposto no artigo 46 do Código Civil confirma tal conclusão. Com efeito, esse
artigo enumera as informações que obrigatoriamente deverão constar do estatuto,
para que o Cartório competente providencie o seu registro, dentre as quais
destacamos as seguintes: “Art. 46. O
registro declarará: ... II – o nome e a individualização dos fundadores ou
instituidores, e dos diretores; III – o modo por que se administra...;”. Ressalta-se
que a exigência em pauta se aplica a todas as pessoas jurídicas de direito
privado (associações, sociedades, fundações, organizações religiosas e partidos
políticos), pois está inserida no Capítulo que trata das Disposições Gerais referentes às Pessoas Jurídicas (artigos 40 a 52 do
Código Civil).
A par dessa exigência legal, cabe reconhecer que o
estatuto deverá designar a composição da diretoria da igreja e especificar as
suas principais atribuições. Isso, porque os diretores são os responsáveis pela
administração da pessoa jurídica. O estatuto deverá indicar também, ainda que em
linhas gerais, a forma como a igreja será administrada. E assim, dentre as diretrizes
e atribuições concernentes ao seu modo de administração, deverão ser inseridas as
normas relativas à movimentação financeira. Porquanto, sem o mínimo de regras
nesse sentido, não será possível administrá-la com eficiência e nem alcançar os
fins definidos no seu estatuto.
Desse modo, para que as igrejas evangélicas possam desempenhar
adequadamente a administração financeira, mormente aquelas que arrecadam
dízimos e ofertas dos seus membros, será preciso instituir algumas funções
administrativas para atender essa finalidade. O estatuto é o documento que oficializa
essas funções, tais como administrador financeiro, tesoureiro, membro do
conselho fiscal, dentre outras, especificando as atribuições de cada uma delas
dentro da estrutura organizacional, além de indicar como serão desenvolvidas as
atividades de arrecadação, aplicação e registro das contribuições financeiras.
Surge então como consequência dessas atividades
administrativas a discutida prestação de contas. Salienta-se que sem ela não se
completa o ciclo da receita e despesa inerente a qualquer organização, o qual se
inicia com a arrecadação e conclui com a aprovação das contas. Daí a
necessidade de que o estatuto faça a previsão acerca da forma adequada para a prestação
de contas e indique precisamente qual é o órgão interno responsável por sua aprovação.
Essa aprovação de constas pode ocorrer por meio da deliberação de qualquer dos
órgãos que compõem a estrutura da igreja, como por exemplo, diretoria, corpo de
obreiros, conselho fiscal ou assembleia geral dos membros.
O importante é que exista essa previsão no estatuto
da organização religiosa, pois a prestação de contas é um mecanismo de controle
financeiro indispensável à lisura, correção e transparência na administração de
qualquer pessoa jurídica. Por conseguinte, a ampla liberdade de organização e
funcionamento das organizações religiosas não autoriza a total ausência de
regras sobre o modo de administrar as movimentações financeiras, em face do que
dispõe o artigo 46, inciso III, do
Código Civil.
Convém apresentar, a título de comparação, alguns requisitos
legais aplicados às associações, pessoa jurídica de direito privado que mais se
assemelha às organizações religiosas. Na sua redação original, o artigo 59 do Código Civil de 2002, ao
disciplinar sobre o funcionamento das associações, estabeleceu como competência
privativa da assembleia geral dos associados a atribuição de “aprovar as contas” (inciso III do artigo 59). No entanto,
a redação desse artigo foi modificada pela Lei
nº 11.127, de 28 de junho de 2005, que suprimiu essa atribuição da
assembleia geral dos associados, porém inseriu o inciso VII no artigo 54 do Código Civil, para determinar que o
estatuto das associações deverá conter, sob pena de nulidade, as seguintes
regras: “VII- a forma de gestão
administrativa e de aprovação das respectivas contas”.
Como se constata, o Código Civil concedeu maior
liberdade para as associações. Permitiu não apenas que a assembleia geral dos
associados pudesse aprovar as contas, mas também qualquer outro órgão da sua
estrutura administrativa. Nesse caso, a legislação caminhou do maior para o
menor rigor nos requisitos administrativos. Quanto às organizações religiosas é
de todo recomendável que a parte financeira seja administrada com
responsabilidade e transparência, para que a legislação não caminhe no sentido inverso,
passando da atual ampla liberdade para um eventual controle no futuro.
Dessa forma, não resta dúvida de que as
organizações religiosas devem constar no seu estatuto a previsão quanto ao
procedimento da prestação de contas, cuja incumbência pode ser atribuída a
qualquer dos seus órgãos internos. E mesmo na hipótese do estatuto ter sido
registrado sem qualquer previsão sobre a forma de aprovação das contas, cabe à
igreja adotar o mecanismo que for mais adequado à sua realidade administrativa,
pois liberdade de estruturação interna e de funcionamento não se traduz na
inexistência de regras financeiras.
Ainda mais porque a organização religiosa é
formada pela coletividade dos membros e possui a finalidade social de exercer atividades
religiosas. Não se trata, por conseguinte, de empreendimento privado, no qual
as contas interessam exclusivamente ao seu empreendedor. Se aos membros é
permitido participar com as suas contribuições para que a igreja alcance os
seus fins sociais, não faria o menor sentido negar a essa coletividade o
direito à prestação de contas, mesmo que a sua aprovação seja de competência da
própria diretoria que administra os dízimos e ofertas.
Ademais, antes de ser um dever legal, a
prestação de contas se eleva à condição de dever moral. Sobretudo por se tratar
de uma organização religiosa, fundada sobre princípios éticos e religiosos que
visam defender a honestidade, a integridade e a moralidade do ser humano na
vida em sociedade.
Logo, a prestação de contas é um direito legítimo
da coletividade e a ela podem ter acesso todos os integrantes da pessoa
jurídica. Ainda que a aprovação das contas seja atribuída ao menor de todos os
seus órgãos administrativos e os relatórios financeiros não sejam divulgados em
reuniões ou locais abertos ao público, os membros não podem ser impedidos de
tomar conhecimento a respeito das contas da igreja. A ampla liberdade das
organizações religiosas não possui força jurídica capaz de banir esse direito
dos seus membros.
Tanto é que não há no Código Civil e nem em
outra lei qualquer disposição que proíba aos integrantes da pessoa jurídica ter
acesso às contas da própria entidade. Muito pelo contrário, o acesso à
informação em nosso país, constituído em Estado Democrático de Direito, foi
elevado à condição de garantia fundamental da pessoa humana, conforme previsto
no artigo 5º da Constituição Federal de
1988, Lei de maior hierarquia nacional, que assim preconiza: “XIV - é
assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte,
quando necessário ao exercício profissional;”. Pois então, resguarda-se o sigilo
da fonte quando for necessário, contudo o acesso à informação é garantido a
todos.
Diante do exposto, resta apenas concluir que as
organizações religiosas devem estabelecer regras claras e adequadas para o
procedimento administrativo da prestação de contas. Além disso, a competência
atribuída a um órgão de sua estrutura interna para aprovar as contas não impede
que todos os membros da igreja tenham acesso aos registros financeiros. Cuida-se,
portanto, da garantia fundamental do acesso à informação.
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